quinta-feira, fevereiro 5

A minha sombra salvou-me a vida (Deserto do Namibe – Fevereiro de 2009)

É obvio que toda a gente já me tinha avisado dos problemas que há em andar sozinho por estas terras insólitas, mas já se sabe como é que é o bom português, gosta de meter o nariz em tudo. No passado domingo aproveitei o sol brilhante que se fazia sentir e decidi ir para a praia. A praia para quem ainda não sabe fica a uma hora e meia da cidade do Lubango, mas propriamente na belíssima cidade do Namibe. Para lá chegar tem de se atravessar o belo e monstruoso deserto do Namibe.O outrora fértil deserto do Namibe é dos desertos mais antigos e estéreis do mundo. A sua área é de aproximadamente 2.000 km x 50-160 km, numa faixa corre ao longo da costa atlântica. Montanhas isoladas erguem-se do deserto e as enormes dunas de areia podem atingir 400 m de altura.As temperaturas podem disparar para os 40 graus Célsius, ou até mais, quando sopra o vento quente e seco do Leste. Curiosamente, estes ventos ocorrem na estação fria, entre Abril e Agosto, e são habitualmente fortes e quentes. Transportam detritos (restos de plantas e insectos) provenientes do interior, essenciais para a conservação da vida, fornecendo alimento aos seus pequenos habitantes.Tudo indicava para mais uma viagem tranquila e rotineira, já lá tinha estado duas vezes e tudo tinha corrido bem. Gosto de andar por ai montado na minha segunda casa e conhecer novas aldeias e cidades que apesar de todas pertencerem ao mesmo país, todas têm sempre algo de peculiar e diferente. Alguém já me tinha falado do incrível resort “os flamingos”, situado à beira mar a cerca de 20 km do centro do Namibe. Como tinha uma importante reunião com o Administrador Municipal no dia seguinte de manhã, achei que era a altura certa para ir conhecer este sitio à beira mar, saborear uma bela lagosta enquanto o sol se escondia por detrás da linha do horizonte e dormir num sitío em condições. Assim foi, fiz-me à estrada, o sol ainda brilhava na sua máxima plenitude e atravessava o céu na minha direcção. Duna após montanha cheguei a um desvio que dizia: “Hotel Lodge Flamingos 23km”. Era mesmo aqui. Entrei devagar para conhecer o terreno e logo percebi que tinha de atravessar as enormes dunas que separavam a estrada da praia. Sempre achei que o meu jipe fosse capaz de superar tal obstáculo, não tivesse ele o nome de santa fé, mas passados 10km de duro 4x4 ele cedeu e a roda direita da frente ficou presa numa imponente duna. Eram 18:15, tinha aproximadamente 30m de luz pela frente e um telemóvel sem cobertura de rede à já duas horas. Tentei arranjar umas madeiras para por debaixo do pneu e tirar o carro dali, mas sem efeito. A noite aproximasse e medo apoderou-se de mim. Tentei manter a calma e pensar na melhor solução. Estava destroçado, tinha suor a escorrer pelo corpo todo e rapidamente me apercebi que não era do calor que se fazia sentir, mas sim da adrenalina que tinha tomado conta dos meus sentidos. O escuro da noite apoderou-se da paisagem e eu fiquei dentro do carro ainda na esperança que alguém passasse por ali a caminho do Hotel. Não tinha água, nem comida e se quisesse andar até à estrada tinha de caminhar 10 km em pleno deserto. Depois de duas horas no carro sem saber o que fazer, decidi sair e fumar o cigarro da descontracção. É inexplicável a quantidade de sons diferentes que se conseguia ouvir. Nunca pensei que um deserto tão árido e vazio fosse habitado por tantos seres. No meio daqueles sons, a uns 20 metros de mim consegui vislumbrar duas pequenas luzes, que por alguns segundos pensei que fossem pirilampos do deserto. Lol… realmente só um tuga com a mania que é esperto podia pensar isso. Afinal de contas, quando observei com mais atenção, percebi que eram os olhos de algo muito brilhante que me observava. Os sons aumentavam à mesma medida que o medo me fazia apagar o cigarro e voltar rapidamente para dentro do carro. Liguei o carro, acendi as luzes e percebi que os pirilampos eram sim uma hiena muito porca e com um ar esfomeado que rondava o meu carro. Fiquei aterrorizado, passou-me tudo pela cabeça, mas ouve algo que ficou bem claro na minha mente, do meu carro não saia mais… Hienas??? Só as tinha visto no National Geographic e pelo que sei atacam os leões. Assim passei a noite, a transpirar suores gelados enquanto olhava pela janela sempre achar que alguém estava na iminência de atacar. Estava triste, cansado e esfomeado. Percebi que toda a tecnologia que está ao serviço do homem no meio do deserto é inútil. Só me restava esperar que a luz do dia voltasse e alguma alma bondosa passasse por ali… A noite passou, e os primeiros raios de sol acordavam os meus pensamentos sombrios e davam-me a força para agir. Depois de muito pensar, percebi que nada mais me restava do que caminhar na companhia da minha sombra e na certeza de que alguém me ia encontrar e salvar deste filme deserto de personagens felizes. Assim foi, sai do carro e agarrei no primeiro pau que consegui encontrar, sempre na ilusão de que era a melhor arma caso alguns dos animais que comigo pernoitaram no deserto quisessem atacar. Caminhar nas grandes metrópoles é bastante mais fácil do que no deserto. Ali requeria um gasto de energia grande, mas o mais assustador era não conseguir por de lado os negros pensamentos que invadiam a minha cabeça. No meio das dunas e com os pés já muito calejados, via o meu carro e único ponto de abrigo a ficar longe, cada vez mais longe. Sentia o calor a tomar conta do meu corpo mas não tirava a roupa com medo que o meu cheiro atraísse algum animal. Comecei a caminhada às 5:30 da manhã e por volta das 6:15 o meu pior pesadelo tornou-se realidade: a hiena voltou a aparecer e a rodear o meu caminho. Ela estava sozinha, eu também. Mano a mano, pensei eu... Nesta altura de terror senti uma força enorme a invadir a minha mente. A partir deste momento mágico em que a minha existência ficou em risco, senti que nada mais me restava do que enfrentar a risonha hiena que com toda a certeza achava que tinha pequeno-almoço incluído. Sempre que sentia que estávamos mais próximo do que era desejável, atacava-a com o meu pau e ela retirava-se alguns metros mas sem nunca me perder de vista. Assim foi durante os 10 km de caminhada pelo deserto, era como um jogo de Poker, onde eu usava o meu bluff para o meu adversário se retirar. Quando cheguei à estrada, já pelas 7:30, a hiena retirou-se de vez e deixou-me sozinho, sem forças mas com vontade de sorrir por ter vivido tal filme. Durante a minha caminhada muitos outros bichos cruzaram o meu caminho, alguns deles nem consigo identificar, mas nenhum foi capaz de me atacar. Acho que teria sido derrotado em poucos segundos, ou talvez não, mas de que vale agora pensar no que podia ter acontecido… Estou vivo e bem vivo! Valeu a experiência! O carro está como novo… Vale a pena dizer que depois de tudo, acabei por não ir ao resort e duvido que vá lá tão cedo. Valeu a minha sombra e o facto de as hienas só atacarem quando estão juntas. Força Angola!!!

7 comentários:

  1. Primão,

    Antes de mais, deixa-me dizer-te uma coisa que acho que já sabes: és um gajo que admiro muito.
    Apesar de hoje em dia não estarmos tão presentes na vida um do outro, quero que saibas que esses sentimentos não mudaram.
    E a razão pela qual te digo isto agora é que este teu posto fez com que esses sentimentos se ressuscitassem, por momentos, bem à flor da pele.
    História incrível, bem escrita e, sobretudo, muito bem contada.
    Passarei a visistar este blog sempre que puder, e espero que não me desiludas. Após este post, acredita que as expectativas estão bem altas.
    Espero que consigas encontrar nessa terra mágica aquilo que tanto procuras, e que tanto tens procurado ao longo da tua vida.
    De uma certa maneira, não consigo deixar de te invejar. Mesmo. Espero poder ir aí visitar-te num futuro muito próximo.
    Grande abraço, Primo.
    Fica bem.

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  2. Vê se te consegues aguentar vivo sff. O pessoal agradece.

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  3. THE HUMAN PLAYGROUND

    Abraço,
    Hélder Romão

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  4. Cunha como é brother...tu és maluco...hienas e tal...essa merda é para contares aos netos...epà achei aue jà controlavas melhor um 4x4 sobretudo depois de tanta licao aqui do bellini...lol..liguei-te nos anos e deixei mensagem para te dar um abraco. Agora que ja estas ai da-lhe como sempre e vai correr tudo bem...que o sacrificio de partir e de arriscar seja compensado pela sorte e pelo teu empenho em chegar a algum lado...acabei por n ver o teu puto...espero q voltes rapido...grande abraco e vai contando historias.

    Fica. BelliCunha

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  5. Bela história!
    Saudações de um blogueiro amigo de Angola!

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  6. A próxima vez que vires uma Hiena faz o que eu faço...Conta-lhe uma anedota que ela "parte-se" a rir!!!!

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  7. Grande Cunha. Eu acho que a hiena é que teve sorte. Afinal de contas um gajo sem comida pode ser muito perigoso.

    Como qualquer outra pessoa tens os teus defeitos e virtudes, mas de uma coisa tenho a certeza: nunca serás um chato. E isso puto, acredita, é mesmo muito bom.

    Grande abraço

    Augusto

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